Por que os Remédios São Tão Caros?

Prof. Dr. Renato Sabbatini




A indústria farmacêutica brasileira volta a cair sob os holofotes da mídia com os aumentos recentes nos preços dos medicamentos, que muita gente considera revoltantes e abusivos. Pessoas com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, e que dependem dos medicamentos para não morrer, ficam totalmente à mercê dos preços fixados unilateralmente pelas empresas, que em alguns casos detêm virtual monopólio comercial e que importam os seus componentes básicos das suas matrizes no exterior. Isso é agravado pelo baixo poder aquisitivo da população brasileira e pelo fato de que a maioria dos doentes crônicos está na segunda ou terceira idade, toma múltiplos medicamentos, são aposentados e recebem proventos insuficientes para comprá-los. Desnecessário lembrar que, ao contrário do que acontece na maioria dos países desenvolvidos, a maioria dos planos de saúde não cobrem gastos com medicamentos, o que é um absurdo, considerando que estes são uma parte importante do tratamento. 

Conclusão: no Brasil, remédio não é para todos, como deveria ser se tivéssemos uma medicina mais preocupada com o ser humano e não com os lucros. 

O fato é que não temos uma indústria farmacêutica realmente brasileira, que tenha autonomia científica e industrial para baratear o desenvolvimento e produção dos insumos básicos para fabricação de medicamentos. Isso explica os aumentos, abusivos ou não: com a catástrofe cambial provocada irresponsavelmente pelo próprio governo, configura-se mais um sofrimento involuntário do povo brasileiro, dessa vez envolvendo doença e morte (será que os economistas conseguem dormir bem à noite, pensando nos milhares de brasileiros que morreram ou estão morrendo por culpa de suas decisões?). 

Como a maioria das substâncias que entram na composição dos medicamentos é importada ou tem royalties pagos em dólar, o impacto sobre os preços foi em certa parte inevitável. Apesar da promessa vazia do ministro Serra de que iria coibir os aumentos, qualquer um pode ver que não foi isso que aconteceu, e que o setor farmacêutico conseguiu se recuperar bem do "inferno astral" de fevereiro e março. A demanda no setor é inelástica, como gostam de dizer os economistas. 

Uma das razões para os altos preços de certos medicamentos (o Viagra, por exemplo, começou custando 20 a 30 reais por comprimido!) é o inacreditável custo de desenvolvimento de novos fármacos. Vou dar uma breve explicação sobre isso, usando um exemplo real. Ficará claro, então, porque as indústrias nacionais não têm condições de realizar investimentos próprios e dependem cada vez mais das importações. 

O exemplo refere-se ao Tagamet (cimetidina), da empresa inglesa SmithKline, que revolucionou o tratamento das úlceras pépticas. Seu caminho para o mercado, o qual dominou sozinho por quase uma década, começou em 1963, no laboratório de pesquisa do nobelista James Black, que queria testar uma droga que bloqueasse o mecanismo de secreção de ácido pelas células do estômago. Depois de onze anos de pesquisa e de ter testado mais de 700 compostos, com gastos de US$ 50 milhões, a empresa chegou em 1974, à cimetidina. Ela foi então submetida à testes em animais e seres humanos para comprovar sua eficácia e segurança e determinar a dosagem ideal. Esses testes, que ocorrem em três fases, custaram mais 100 milhões para a SmithKline, e são exigidos pela poderosa FDA. Finalmente, em 1977, essa aprovação foi conseguida e o Tagamet começou a ser vendido à razão de US$ 20 por tablete. O sucesso foi tão grande, que a empresa faturou 100 milhões de dólares no primeiro ano, e recuperou todo o seu investimento em apenas um ano e meio. Foi o primeiro medicamento sintético a ultrapassar US$ bilhão em vendas, dando um lucro fabuloso ao laboratório. O domínio do Tagamet só foi terminar em 1983, quando outras indústrias lançaram medicamentos concorrentes, como o Zantac (Glaxo), Pepcid (Merck), Axid (Lilly), Losec (Astra) e outros. 

O caminho é longo: a fase de descoberta leva de 2 a 10 anos, os testes em animais e em seres humanos entre 4 a 10 anos, e a aprovação pela FDA entre 6 meses a 7 anos. A média é de cerca de 10 anos, e o investimento típico está na casa dos 200 a 300 milhões de dólares, para um único medicamento (isso é maior do que o faturamento total conjunto das cinco maiores empresas farmacêuticas brasileiras). Apenas uma entre cada 5.000 drogas testadas chega a sair do laboratório. 

Em função dos altos custos de desenvolvimento dos medicamentos, dois fenômenos tornaram-se muito relevantes: primeiro, a necessidade de atingir mercados globais, para poder recuperar os investimentos feitos. Isso exige uma abertura grande dos mercados nacionais à importação, a aniquilação da capacidade local de produzir medicamentos, a obediência às patentes internacionais e a ausência de controles estatais dos preços de comercialização. "Coincidentemente", tudo isso aconteceu no Brasil nos últimos cinco ou seis anos, graças a um lobby muito poderoso e bem orientado estrategicamente das indústrias. Além disso, estão ocorrendo imensas fusões de empresas multinacionais, como a primeira delas, entre as suiças Ciba-Geigy e a Sandoz (que passou a chamar-se Novartis), e as mais recentes, entre a Astra (sueca) e a Zeneca (inglesa), que passou a chamar-se AstraZeneca, e entre a francesa Rhone-Poulenc e a alemã Hoechst, resultando na Aventis.

Nesse jogo de gigantes, o Brasil se perdeu, infelizmente. Um dos cinco maiores mercados farmacêuticos do mundo, tem grande sofisticação na produção, na distribuição e no consumo, mas é totalmente inexpressivo na pesquisa e desenvolvimento próprios. É o resultado lamentável de décadas de descaso governamental no apoio à pesquisa aplicada, e da falta de uma política realmente nacional no setor farmacêutico. 

Os especialistas em saúde pública já deram uma das soluções para diminuir o custo dos medicamentos no Brasil: é o que se denominou "Lei dos Genéricos". Genérico é o medicamento que é comercializado sob o nome da substância fundamental, e não de um nome comercial. Um exemplo bem conhecido do público é o ácido acetil-salicílico, nome genérico da substância usada na Aspirina, no Bufferin, no AAS e dezenas de outros nomes comerciais. 

A Lei dos Genéricos, que data de 1994, e que demorou para ser  implementada por pressão dos laboratórios, exigia inicialmente  que os médicos escrevessem as receitas para os pacientes usando apenas os nomes genéricos e não os comerciais, como é a prática mais comum no Brasil. Teoricamente, pelo menos, o paciente deverá ir à farmácia e comprar o medicamento comercial de sua preferência ou que tiver o melhor preço, desde que tenha a mesma formulação prescrita pelo médico. Como estágio intermediário para "educar o público", o Ministério de Saúde determinou que as atuais marcas comerciais coloquem na embalagem o nome do genérico com o mesmo destaque do nome comercial. A Lei que foi aprovada finalmente, em 1999, agradou mais os médicos e as indústrias farmacêuticas pois ainda preserva o direito do médico de negar a substituição da marca comercial que receitou, pelo genérico, na farmácia, sem sua aprovação prévia. Se o médico não exigir isso na receita, então o farmacêutico responsável pela farmácia é que irá assumir a responsabilidade.

Por que a Lei do Genérico pode abaixar o preço dos medicamentos? Novamente segundo a teoria existem vários mecanismos. Em primeiro lugar, a concorrência entre as empresas que fabricam diferentes marcas comerciais para um mesmo genérico seria salutar no sentido de abaixar os preços. Em segundo lugar, é necessário entender que o que custa muito caro não é a produção do medicamento em si, mas sim o marketing da marca comercial. O ideal para uma indústria farmacêutica seria deter o monopólio sobre um genérico, como acontece com o orlistatin (nome comercial: Xenical) e o sildenafil (nome comercial: Viagra). A patente mundial que garante esse monopólio tem uma duração limitada, mas que é o suficiente para garantir a exploração comercial com lucro. O problema é que esta é uma situação rara, pois a maior parte das linhas de produtos farmacêuticos (principalmente no Brasil, como mostrei no artigo da semana passada) utiliza substâncias que já caíram no domínio público, ou que são licenciadas pelas empresas farmacêuticas que os desenvolveram, para quem quiser vender. Esta é uma das estratégias usadas para estender a rentabilidade de uma substância por um tempo mais longo. Citando novamente o exemplo da cimetidina (Tagamet), quando surgiram medicamentos concorrentes, como o Zantac, que usa substâncias com o mesmo princípio de ação fisiológica, mas que não eram protegidos pela patente da cimetidina, a SmithKline, a empresa farmacêutica que detinha o monopólio usou os truques convencionais do ramo: 1) baixar o preço 2) solicitar permissão que o medicamento fosse vendido sem receita (o que se denomina de OTC, ou "over the counter", "medicamento de venda livre") 3) relançar sob outro nome ou em associação com outros medicamentos 4) vender licenças para todo mundo. A "vida" de um monopólio de genérico é relativamente curta, portanto, e deve ser aproveitada ao máximo. 

A conclusão de tudo isso é que para vender bem um remédio sobre o qual não detém monopólio, a empresa farmacêutica tem que criar uma marca distintiva e gasta muito dinheiro para "imprimir" essa marca na cabeça dos consumidores, principalmente daqueles que interessam: os médicos. No modelo da prescrição por nome comercial, o médico é a figura super-importante: é uma situação sui-generis, pois quem compra o produto não é o alvo da propaganda, e sim o paciente. Essa particularidade fez com que, ao longo dos anos, todo o aparato mercadológico das indústrias farmacêuticas que trabalham com medicamentos ditos "éticos" (que somente podem ser consumidos com receita médica) fosse voltado a convencer o médico a receitar uma marca determinada ao invés de outra. E isso, como já adivinhou o leitor, custa muito caro: no Brasil estima-se que custe mais de 1 bilhão de dólares por ano, que cobre tudo, desde as amostras grátis, o salário dos propagandistas médicos (que visitam os consultórios e os hospitais), os anúncios em revistas especializadas, as verbas para congressos, revistas, folhetos, e mil coisas mais. Portanto, o preço do medicamento é formado por diversos fatores, alguns racionais, como 1) quanto foi gasto em seu desenvolvimento 2) qual é o custo da importação e produção, 3) qual é o consumo e 4) se existe concorrência; e outros "políticos", como: 5) se exige receita. 6) o quanto vai se gastar para educar e convencer os médicos a receitá-lo. 

Quando o genérico predomina na receita, os laboratórios não precisam gastar tanto dinheiro e isso, teoricamente, também levaria a uma queda no preço dos medicamentos para o consumidor. Eu digo teoricamente, porque existe uma série de obstáculos que trabalham contra essa situação ideal. A primeira é a resistência dos próprios médicos, que querem preservar a liberdade de indicar uma marca de sua confiança, pois a qualidade dos medicamentos varia de uma maneira muito ampla; muitos médicos acham que o paciente ficaria presa fácil dos "picaretas", as empresas de baixa qualidade, e dos "empurroterapeutas", ou seja, dos atendentes de balcão, comprometendo assim a eficácia da terapia). O segundo obstáculo é a maneira como funciona o sistema de fabricação, distribuição e venda nas farmácias, universalmente baseado na marca comercial e no preço diferenciado da mesma. Existe um enorme desconhecimento dos farmacêuticos e dos públicos quanto à equivalência entre remédios comerciais (para não dizer dos médicos, também...) A situação chegaria a ser ridícula: imaginem em um país em que a maioria (estatística) da população mal sabe ler, quanto mais ter conhecimentos de farmacologia clínica, chegar à farmácia e ter condições de escolher qual o medicamento que vai comprar. Ora, ora... 

O marketing das empresas sob a Lei dos Genéricos também vai ser profundamente alterado: vai ser mais importante, por exemplo dirigir ações aos pacientes também, e não somente aos médicos. A educação do consumidor final vai ser tão ou mais importante que a educação do médico. 

Finalmente, para que a Lei dos Genéricos fosse realmente eficaz, o ideal seria apenas vender genéricos, e que os mesmos fossem amplamente testados quanto à sua qualidade e eficácia. As marcas comerciais teriam que deixar de existir. Mas esse é um passo bastante radical, que só aconteceria em uma economia totalmente socializada (foi o que aconteceu em Cuba, por exemplo). Por muito tempo ainda teremos que conviver com um modelo misto, como acontece na Alemanha, onde empresas como a BASF tem linhas de genéricos de alta qualidade (aliás, lançada no Brasil também, com pouco alarde).

Para Saber Mais

Comunicado ABIFARMA: Medicamentos Genéricos e a Saúde da População
 
 
 
 
 



 
 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 4/6/99 e 11/6/99.

Autor: Email:

WWW: http://www.sabbatini.com/renato
Jornal: http://www.cosmo.com.br


Copyright © 1999 Correio Popular, Campinas, Brazil 

Uma realização: Núcleo de Informática Biomédica
Todos os direitos reservados. Reprodução proibida.