A Doação Presumível

Dr. Renato M.E. Sabbatini

Em fevereiro de 1997, o Brasil, um pais normalmente considerado como relativamente atrasado em matéria de transplantes de órgãos (foram poucos mais de 2 mil no ano anterior, inclusive os cerca de 400, de córnea,que deveriam ser os mais freqüentes), entrou para a história como sendo um dos poucos países a ter a chamada "doação presumível" de órgãos.

Em resumo, para quem ainda não se informou a respeito, éo seguinte: anteriormente a essa lei, os órgãos de uma pessoa com morte cerebral somente podiam ser disponibilizados para transplante através de um consentimento expresso e por escrito do indivíduo antes de morrer, e/ou por sua família imediata, responsável pelo destino dos despojos após a morte. Em outras palavras: as pessoas podiam escolher entre doar seus órgãos para salvar vidas,ou para serem comidos pelos vermes... Existem uma série de precedentes históricos, culturais e religiosos para essa disposição legal, relacionadas ao enterramento do corpo (considerado essencial, por algumas religiões, como preparação para o Juízo Final, como manda a Bíblia), para a proteção da privacidade,ou contra a comercialização de órgãos.

A nova lei inverte totalmente a situação: toda pessoa,quando morre, passa a ser doadora automática dos órgãos que podem ser aproveitados, a não ser que ela se manifeste contra,de forma oficial. É uma legislação avançada,que vence uma série de resistências (inclusive da Igreja Católica, que acabou se manifestando favoravelmente, contra todas as previsões), e que teoricamente deve melhorar sensivelmente a disponibilidade de órgãos para transplante (da ordem de 25 a 30 %, segundo os especialistas).

De minha parte, sou inteiramente a favor. Depois de cessada a vida, não há porque continuarmos "donos" de um corpo.O empresário Antônio Ermírio de Moraes escreveu uma coluna de candente crítica na "Folha de São Paulo", vituperiando a nova lei como uma espécie de "estatização dos corpos" (uma expressão sem sentido, pois não é o Estado que passa a ser dono do cadáver). Curiosa essa posição, de alguém que sempre foi um batalhador pelas melhores condições dos hospitais brasileiros, como diretor do Hospital da Beneficência Portuguesa e do Hospital do Câncer de São Paulo.

Outro argumento estranho contra a lei, que escutei de supostos "progressistas"de esquerda, é que " somente os pobres que vão acabar doando órgãos, os ricos vão dar um jeito de escapar da lei. Ora, que absurdo ! E daí ? Mesmo que isso aconteça (o que duvido), seria uma boa coisa. Depois de morto, todo mundo deixade ser rico ou pobre, branco ou preto. Se um rim é saudável, não faz diferença de quem ele veio. De qualquer forma, ele iria para os vermes, mesmo. Isso não passa de um refrão demagógico.

O único perigo, ao meu ver, é a declaração apressada de morte, ou até coisas mais graves, com o intuito de apressar a retirada de órgãos para pessoas que podem pagar clandestinamente. Na China, onde são doadoras obrigatóriasas mais de 2 mil pessoas executadas por ano por diversos crimes, já existem evidências ominosas de condenações ditadas pela demanda de corações e rins pelos hospitais estatais. Mas, trata-se de uma ditadura, e isso certamente não aconteceria por aqui.

De qualquer forma, perigos à parte (que podem ser coibidos pela legislação complementar), as atuais campanhas pela doaçãode órgãos após a morte (a famosa carteirinha de autorização prévia, que sempre carrego comigo) perde o sentido. Os especialistas médicos, como o Dr. Ubirajara Ferreira, meu colega na UNICAMP e presidente da comissão responsável pela doação de órgãos, são unânimes em dizer que a lei não resolve o problema inteiramente. Por sinal, o ano passado a UNICAMP recebeu mais órgãos do que foi capaz de transplantar. O problema está no lado da captação, com o fato de que a notificação da disponibilidade dos órgãos geralmente não é feita a tempo para permitir o seus aproveitamento; ou com o fato de que existem poucos serviços bem estruturados e com recursos materiais e humanos para realizar os transplantes, alguns dos quais são complexissimos (fígado, por exemplo), e que para os quais os cuidados pós-operatórios são o mais importante. E nem estamos falando na porcentagem de transplantes que dão certo, pois ela é baixa em uma população que não pode pagar o custo dos caros inibidores imunológicos dados após a operação, ou que não tem sequer nível educacional, social e econômico para otimizar a viabilidade do transplante (alimentação nutritiva, por exemplo, ou boas condições sanitárias.



 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 1/2/1997.

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