Os Sonhos Têm Significado?

Dr. Renato M.E. Sabbatini

 
O último número da excelente revista on-line de divulgação científica ComCiência traz diversos artigos sobre o tema da interpretação dos sonhos, motivado pelo centésimo aniversário da edição do famoso livro do médico e psiquiatra austríaco Sigmund Freud, pai da psicanálise.

As teorias de Freud sobre o significado e o papel dos sonhos são centrais para a prática psicanalítica, pois eles são usados como uma espécie de "via régia para o inconsciente", como disse o próprio Freud. Segundo essa teoria, o sonho seria a forma encontrada pela mente para realizar desejos ocultos, que não são aceitáveis pela mente consciente, ou seja, eles se relacionam com emoções e motivações inaceitáveis, ou recalcadas. O sonho é um efeito desses recalques, e  portanto, para o psicanalista treinado, é uma forma de atingir e entender o que se passa no inconsciente do paciente. O paciente conta seus sonhos, e o psicanalista os interpreta à luz das teorias psicanalíticas de Freud e seus sucessores, como Jung e Lacan, e depois os aplica ao entendimento dos problemas relatados pelo paciente. Essa informação é depois usada pelo clínico para tentar conseguir a cura de neuroses e outros problemas psíquicos, usando outras propostas freudianas, como a catarse.

Na época em que foi publicado, o livro não comoveu nem convenceu médicos e cientistas. Demorou quase oito anos para vender mil exemplares. Mas, gradativamente, com a valorização das idéias revolucionárias de Freud sobre o funcionamento da mente humana, a sua teoria de interpretação dos sonhos passou a assumir um papel central, no qual reinou por meio século. Antes de Freud, é claro, existiam muitas teorias sobre os sonhos, e muitas aplicações para eles, também. A natureza muitas vezes ilógica e bizarra dos sonhos influenciou religiosos, esotéricos e parapsicólogos de todas as épocas a usá-los como caráter divinatório ("sonhos proféticos"), ou como manifestações paranormais e sagradas (comunicação com o outro mundo, com os espíritos ou com Deus). Depois de Freud os sonhos passaram a ser entendidos como tendo uma função fisiológica e um conteúdo simbólico, ou seja, referências indiretas a temas que nos preocupam durante a nossa vida. São famosas (e infames) as interpretações de Freud sobre "símbolos fálicos", ou seja, sonhar com qualquer objeto alongado, como cobras, gravatas, revóveres, chaves de fenda ou charutos (Clonton que o diga!) simboliza o pênis. Sonhar com buracos, cavernas, etc., simboliza a genitália feminina, a vulva.

Atualmente, os neurocientistas sérios descartam praticamente todas as idéias de Freud como sendo inconsistentes com o que se sabe sobre o funcionamento do cérebro. Pesquisadores mostraram que as experiÊncias vividas durante o dia, e a estimulação externa durante o sono influenciam o conteúdo muito mais do que experiências passadas. Estudos feitos com novos equipamentos computadorizados de visualização das funções cerebrais durante o sonho mostraram que as partes do cérebro envolvidas no processamento simbólico e no pensamento racional estão desativadas. Os sonhos seriam, então, apenas "flashes" aleatórios e fragmentados de memórias adquiridas durante o dia, e que passam pelo cérebro várias vezes por noite, sem nenhuma lógica ou controle. Até mesmo os pesadelos e conteúdo recorrente, tão valorizado pelos psicanalistas, podem ser provocados por disfunções metabólicas e orgânicas (como certos medicamentos psicotrópicos, que causam invariavelmente pesadelos) e não por experiências traumáticas passadas. A função do sonho, então, continua desconhecida da ciência, mas sabe-se que sonhar e extremamente importante para a saúde psíquica. Pessoas impedidas de sonhar desenvolvem alucinações e sérias distorções do pensamento, da percepção e da memória, e podem até morrer.

Confesso que fiquei extremamente decepcionao ao ler "A Interpretação dos Sonhos", quando era estudante de medicina. Inicialmente, tinha ficado fascinado com as teorias de Freud, e cheguei a acalentar brevemente a ideia de me tornar um psiquiatra psicanalítico. No entanto, aquilo que Freud prometia no começo do livro, muito excitante para a época, ou seja, pela primeira vez na história da medicina, uma análise neurofisiológica dos sonhos. baseada em métodos científicos rigorosos, revelou-se um engano. Pareceu-me, ao contrário, ser algo mais próximo da pseudociência do que um discurso lógico e baseado em evidências sobre a função do cérebro. As interpretações que Freud deu sobre o conteúdo dos sonhos são totalmente arbitrárias e pessoais, algumas vezes chegando às raias do ridículo. Por exemplo, para ele uma mesa é um símbolo feminino, pois tem contornos regulares e arredondados, e porque é de madeira (parecido com "madre", "matéria"). Subir em algo significa o ato sexual. Uma parede lisa significa a infância, pois é difícil para uma criança escalar o corpo de um adulto (sic).

O que se conclui de tudo isso? É que os símbolos freudianos do sonho são europeus e brancos, do começo do século: não são universais. Atualmente, nem toda mesa é de madeira, mesa em chinês é outra coisa totalmente diferente, e assim por diante.

É impossível supor que Freud tenha feitos experimentos científicos para chegar a essas suposições sobre o valor simbólico dos sonhos. Em grande parte, ele chegou às regras da interpretação através da análise subjetiva, intuitiva e cultural do conteúdo dos seus próprios sonhos (dificilmente isso seria a base para qualquer conhecimento cientifico, pois carece de isenção e objetividade, e é influenciado pelas expectativas pessoais do cientista, ele mesmo um sujeito de seus próprios experimentos). e de alguns de seus pacientes.

Como o pensamento e os sonhos humanos são ainda totalmente inacessíveis ao exame sistemático de fatos comprováveis, como acontece com outras ciências do mundo natural, a psicanálise será sempre uma não ciência, ou seja, será uma mera acumulação de teorias e suposições infundadas sobre o mecanismo íntimo de funcionamento da mente, tanto na saúde quanto na doença. É um conjunto de invenções do intelecto poderoso de Sigmund Freud, com algum valor prático, mas que dificilmente poderia ser incorporado pela medicina cientifica.

Para Saber Mais

  • Cardoso, Silvia Helena: Entendendo os sonhos. Revista Cérebro & Mente, No. 2 (junho/agosto 1997)
  • Sabbatini, Renato M.E.: Psiquiatria é ciência ? Correio Popular, p.3, 3/7/98.


  • Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 27/10/2000.
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