<

Porque a Homeopatia Funciona

Prof. Dr. Renato Sabbatini



De vez em quando a imprensa é invadida por algumas polêmicas que extravasam o domínio contido e sizudo das academias e associações científicas médicas. Uma delas é a real eficácia dos medicamentos homeopáticos, e se a medicina convencional deveria respeitar a homeopatia como uma ciência de verdade, ou desprezá-la como um dentre os inúmeros ramos fraudulentos da chamada "medicina alternativa".

Conheço muita gente que jura que a homeopatia realmente funciona. São milhares e milhares de casos de pessoas, cujas afecções e moléstias, intratáveis pela medicina alopática convencional, aparentemente responderam ao tratamento homeopático. A ciência existe há mais de 200 anos, tendo sido fundada no final do século 18 pelo médico alemão Samuel Hahnemann. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Medicina Homeopática e a Associação Paulista de Homeopatia são oficialmente reconhecidas pela Associação Médica Brasileira e pela Associação Paulista de Medicina, as quais incorporaram oficialmente a homeopatia como especialidade médica, ao par de todas as outras. Existem cursos de especialização, de residência médica e até de pós-graduação em homeopatia, assim como revistas cientificas em muitos idiomas.

Portanto, trata-se aqui de um movimento sólido e seguido por muita gente. Aliás, é cada vez maior o número de médicos que, desencantados com a agressividade da medicina alopática, estão praticando homeopatia. A pergunta que muitos desses profissionais e seus pacientes se fazem é: mas a homeopatia realmente funciona?

Afinal, não era para funcionar. A homeopatia se baseia em princípios totalmente anticientíficos e inexplicados de ação medicamentosa, que colocam a lógica de pés para o ar. Os princípios ativos da homeopatia, geralmente derivados de plantas e animais, são diluidos muitas vezes (a chamada "dinamização"). Não é comum certos medicamentos homeopáticos serem diluidos 30 vezes, ou seja, coloca-se uma gota do medicamento ativo num recipiente com uma solução de água e álcool, agita-se sistematicamente um certo número de vezes, depois toma-se uma gota dessa solução, coloca-se em outro recipiente com solvente, agita-se novamente, etc. Pode-se provar cientificamente que uma diluição de 30 vezes praticamente não tem mais nenhuma molécula do componente ativo em solução ! E existem dinamizações de até 200 vezes! Então como que é possível existir algum efeito?

Os homeopatas sabem disso, evidentemente, mas procuram dar "explicações" bizarras e não comprovadas sobre o suposto efeito terapêutico, como a retenção de uma "memória energética" da molécula pela água.

As explicações são provavelmente muito mais simples. Existem diversos motivos porque a homeopatia funciona. Entre elas:

1. Muitas doenças se resolvem sozinhas, sem medicamento algum, o que dá a impr homeopatia;

6. Casos individuais de cura são interpretados como comprovação de um efeito para toda a população.

Mas o efeito mais provável da homeopatia (e até de muitas terapias alopáticas) é o chamado placebo. Este é o nome que a medicina dá a um medicamento comprovadamente ineficaz ou neutro (uma pilula de lactose, por exemplo), e que se prescreve ao paciente, dizendo ser um medicamento ativo. Todo placebo sempre obtém algum efeito terapêutico. Por exemplo, Vasomax, um novo medicamento contra a impotência lançado com muito alarde nos EUA, causou ereção em 41 % dos pacientes que o tomaram. Bom ? Pois bem, o placebo causou ereção em 35 % dos pacientes... Bastou o sujeito acreditar que funciona. Aliás, o efeito-placebo parece ser a base de quase todos os afrodisíacos existentes.

Na realidade, eu não me posiciono contra a homeopatia, por princípio. O fato de não se conhecer o mecanismo de ação de um medicamento, como parece acontecer com a homeopatia, não deve ser, e nunca foi um impeditivo para seu uso prático legal, consentido e eficaz na medicina. Aliás, a maioria dos medicamentos ainda é empírico. Um bom exemplo é a famosa aspirina, descoberta pela empresa alemã Bayer, e que ainda é o medicamento mais tomado do mundo. Muitos milhares de anos antes de sabermos que o seu princípio ativo é o ácido acetilsalicílico, e conhecer o seu mecanismo de ação (o que só foi ocorrer cerca de 20 anos atrás), a humanidade vem usando a casca do salgueiro e outros produtos naturais ricos nesta substância, para tratar dores e febres, com grande sucesso.

Meu problema com a homeopatia diz respeito à comprovação científica de sua eficácia, pois esse é um processo muito, muito sério na medicina, e que consome milhões de dólares toda vez que um novo medicamento é descoberto e necessita de permissão para ser comercializado. A medicina homeopática escapa deste aparato de comprovação e fiscalização, baseado em princípios estritamente científicos, e isso é altamente indesejável para a saúde da população. É injusto também, e até perigoso (embora o governo tolere, pois dificilmente as águas diluidas da homeopatia fazem mal para alguém).

Neste processo, um novo medicamento é testado rigorosamente ao longo de três fases: na primeira, são realizados estudos com várias espécies de animais, para comprovar seu efeito biológico real, efeitos indesejados, etc. Na segunda, são realizados estudos com voluntários humanos em pequeno número, para determinar a dosagem e formas de administração mais eficazes, e se o efeito comprovado nos animais se manifesta também de forma incontrovertida nos seres humanos. Na terceira fase, o medicamento é testado em uma população muito maior, fazendo-se um extenso acompanhamento clínico, nas mais diversificadas condições, e são estabelecidas as margens de segurança de uso.

A principal arma da ciência médica para comprovar se um medicamento funciona ou não para um determinado objetivo terapêutico se chama "ensaio clínico aleatorizado prospectivo duplo-cego". Ele funciona assim: grupos de pacientes com determinada doença que se quer tratar, são divididos aleatoriamente em dois subgrupos. Um deles recebe o medicamento, e o outro recebe um placebo. Ambos são avisados que podem estar recebendo um ou outro, mas não sabem qual. Os médicos que fazem o estudo também não sabem, pois os pacientes são identificados com números, cujo significado é mantido em segredo até a conclusão do estudo. Por isso se chama duplo-cego. Isso é feito assim porque se comprovou amplamente que a expectativa de um efeito por parte dos pacientes ou dos médicos influencia muito o resultado.

Depois que um grande número de pacientes é estudado desta forma, fazem-se exaustivos e complexos testes estatísticos, usando-se computadores e bancos de dados, para se determinar-se objetivamente se existe uma diferença significativa entre os grupos controle e tratado. Somente quando este efeito tem uma magnitude considerada clinicamente útil é que o medicamento pode começar a ser usado.

Existem muitos trabalhos médicos, inclusive em homeopatia, que francesa, e cuja publicação foi aceita pela rigorosíssima revista científica "Nature". Beneviste usou um medicamento homeopático em ratos, diluido enormemente, e disse ter comprovado um efeito de aumento da resistência imunológica, em comparação com os grupos controle. Os revisores do trabalho consideraram sua metodologia absolutamente correta e científica, e autorizaram a publicação. Beneviste propôs como hipótese para seus resultados uma "memória" do medicamento ativo, mantida pela água. No entanto, frente a um clamor mundial de indignação dos cientistas médicos, uma comissão foi até o laboratório de Beneviste estudar seus métodos, e descobriu diversas irregularidades. Mais ainda, nenhum cientista, em nenhum lugar do mundo, usando os mesmos métodos, drogas e animais, conseguiu reproduzir os seus resultados, o que foi fatal para sua carreira. A medicina homeopática, no entanto, continua a citar seus resultados como prova científica dos seus princípios terapêuticos.

Soube recentemente que Beneviste fundou um instituto dedicado a pesquisar a tal "memória" da água. Ele chegou a afirmar que conseguiu transmitir o efeito terapêutico homeopático através do correio eletrônico !! Vou deixar as conclusões para os leitores...

Se a população está gastando centenas de milhões de reais em pílulas de açucar e vidrinhos de água quase pura para tratar males reais, isso é um problema muito sério de saúde e de economia pública. A homeopatia precisa apresentar publicamente os estudos científicos que supostamente servem de base para sua "ciência".


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 17/06/97.

Autor: Email:
WWW: http://www.sabbatini.com/renato
Jornal: http://www.cpopular.com.br


Copyright © 1997 Correio Popular, Campinas, Brazil

Copyright © 1996-2000 Universidade Estadual de Campinas
Uma realização: Núcleo de Informática Biomédica
Todos os direitos reservados. Reprodução proibida.